quinta-feira, 22 de maio de 2008

A carta Shotokan

Shotokan

" Teria sido muito difícil para qualquer pessoa prever a extensão da catástrofe que se abateu sobre Tóquio no dia 1° de setembro de 1923. Esse foi o dia do terremoto do Grande Kanto. Quase todos os prédios eram feitos de madeira, e nas horas de fogo intenso que se seguiram ao tremor, a grande capital ficou reduzida a ruínas. Meu dojo, felizmente, escapou da destruição, mas muitos alunos meus simplesmente sumiram no holocausto de edificios em desmoronamento e labaredas. Nós que sobrevivemos fizemos todo o possível para socorrer os feridos e os desabrigados nos dias imediatos ao terrível desastre. Com meus alunos que não ficaram mutilados ou mortos, juntei-me a outros voluntários para ajudar a obter alimentos para os refugiados, para limpar o entulho e para auxiliar na tarefa de remover os cadáveres. Obviamente, precisei adiar temporariamente o ensino do karatê, mas o que não podia ser adiada era a sobrevivência.

Depois de pouco tempo, uns trinta de nós conseguimos trabalho no Banco Daiichi Sogo, para a tarefa de fazer estênceis. Não me lembro quanto recebíamos ou por quanto tempo ficamos empregados, mas, pelo quanto me lembro, aquela locomoção diária desde o dojo em Suidobata até o banco em Kyobasbi parecia continuar por um tempo interminável. Lembro-me de um aspecto da caminhada diária. Naqueles dias, muito poucas pessoas usavam sapatos nas ruas das cidades japonesas; todos usavam sandálias ou tamancos de madeira chamados geta. Existe um deste último, chamado hoba no geta, que tem dois dentes muito compridos e às vezes apenas um, e era desses que eu sempre calçava para fortalecer os músculos das pernas. Havia feito isso na juventude em Okinawa, e não via motivo para mudar agora quando me deslocava para meu trabalho no banco. Os geta de um só dente que eu usava eram talhados em madeira bem pesada e faziam um estalo ruidoso a cada passo, tão ruidoso quanto o produzido pelos gera de metal usados por alguns estudantes de karatê hoje em dia. Não tenho nenhuma dúvida de que os transeundes nas ruas olhavam para mim com riso zombeteiro disfarçado, achando engraçado que um homem de minha idade fosse tão tolo a ponto de querer aumentar sua estatura. Afinal, eu já passava dos cinqüenta anos naquela época. No entanto, asseguro a meus leitores que meu motivo não era a vaidade: eu considerava meus gera de um dente uma necessidade para o treinamento diário. Com o passar das semanas e dos meses, Tóquio começou a reerguer-se, e finalmente chegou um tempo em que percebemos que nosso dojo estava num estado deplorável.

O Meisei Juku havia sido construído em torno de 1912 ou 1913, e por longo tempo nada havia sido feito para conservá-lo. Felizmente, recebemos certa quantia de dinheiro do governo municipal de Okinawa e da Sociedade de Cultura de Okinawa para executar as tão necessárias reformas. Mas tínhamos de encontrar outra residência enquanto as obras de restauração eram realizadas. Ouvindo que eu estava necessitando de novos cômodos para treinamento, Hiromichi Nakayama, um notável instrutor de esgrima e um bom amigo, ofereceu-me seu dojo nos horários em que não era usado para a prática de esgrima. Inicialmente aluguei uma casa pequena perto do dojo de Nakayama, mas em pouco tempo pude alugar uma maior com um pátio amplo, onde meus alunos e eu poderíamos praticar. Chegou o tempo, porém, em que esse arranjo se tornou inadequado. O número de alunos aumentou, mas também cresceu o numero de praticantes de esgrima. A conseqüência disso foi que percebi que estava sendo inconveniente para meu benfeitor. Infelizmente, minha situação financeira ainda era delicada e eu não podia fazer o que era obviamente desejável: construir um dojo específico para o karatê.

Foi pelo ano de 1935 que um comitê nacional de patrocinadores de karatê solicitou fundos suficientes para o primeiro dojo a ser erguido no Japão. Foi com certo orgulho que, na primavera de 1936, entrei pela primeira vez no novo dojo (em Zoshigaya, distrito de Toshima) e vi sobre a porta uma tabuleta com o novo nome do dojo: Shoto-kan. Este era o nome que o comitê havia decidido adotar; eu não tivera a minina idéia de que eles escolheriam o pseudônimo que eu usava na juventude para assinar os poemas chineses que escrevia. Eu também estava triste, porque queria mais que tudo que os Mestres Azato e Itosu viessem e ensinassem no novo dojo. Mas eles já não se encontravam sobre esta terra; assim, no dia em que o dojo foi formalinente inaugurado, queimei incenso em meu quarto e rezei para suas almas. Na minha imaginação, os dois grandes professores pareciam sorrir-me e dizer: "Bom trabalho, Funakoshi, bom trabalho! Mas não cometa o erro da complacência, porque você ainda tem muito a fazer. Hoje, Funakoshi, é apenas o começo!" O começo? Eu então tinha quase setenta anos. Onde eu encontraria o tempo e a força para fazer tudo o que ainda precisava ser feito? Felizmente, eu nao parecia e nem me sentia velho, e me determinei, como meus professores me exigiam, a não desistir. Eles me tinham dito que ainda havia muita coisa a fazer. De uma maneira ou outra, eu o faria. Com o término do novo dojo, uma de minhas primeiras tarefas foi elaborar um conjunto de normas a ser seguido e um horário de aulas. Também formalizei as exigências para os graus e classe (dan e kyu).

O número de meus alunos começou a aumentar dia a dia, e nosso novo dojo, que parecia mais do que adequado para nossas necessidades no inicio, a cada dia que passava dava exatamente a impressão contrária. Embora, como digo, não sentisse o peso dos anos, percebi que não conseguia cumprir todas as obrigações que se acumulavam rapidamente. Não era apenas o dojo que precisava ser administrado; as universidades de Tóquio estavam agora formando grupos de karatê em seus departamentos de educação física, e esses grupos precisavam de instrutores. Sem dúvida, era demais para um só homem supervisionar o dojo e viajar de universidade a universidade, e assim indiquei os alunos adiantados para que ministrassem as aulas nas próprias universidades em que estudavam. Ao mesmo tempo, designei meu terceiro filho como meu assistente, delegando-lhe as atividades diárias de dirigir o dojo, cabendo a mim a supervisão do ensino tanto lá como nas universidades. Devo mencionar que nossas atividades não se limitavam a Tóquio. Muitos graduados pelo dojo e também karatecas das universidades encontravam trabalho em cidades provinciais, o que fez com que o karatê se tornasse conhecido em todo o país e numerosos dojos foram construídos.

Este fato ampliou minha missão, pois à medida que o karatê se propagava eu era constantemente solicitado por grupos locais para proferir palestras e dar demonstrações. Quando me ausentava por um período de tempo maior, deixava a administração do dojo nas mãos competentes de meus alunos mais adiantados. As pessoas me perguntavam muitas vezes como aconteceu de escolher o pseudônimo Shoto, que se tornou o nome do novo dojo. Em japonês, a palavra shoto significa literalmente "ondas de pinheiros" e assim não tem nenhum grande significado misterioso, mas gostaria de esclarecer por que o escolhi. Minha cidade nativa de Shuri é rodeada por colinas com florestas de pinheiros Ryukyu e vegetação subtropical; entre elas, está o Monte Torao, que pertencia ao barão Chosuke Ie (que, na verdade, veio a ser um dos meus primeiros patronos em Tóquio). A palavra torao significa "cauda do tigre" e era particulatmente adequada porque a montanha era estreita e tão densamente arborizada que realmente tinha a aparência de uma cauda de tigre quando vista de longe. Quando dispunha de tempo, costumava caminhar pelo Monte Torao, às vezes à noite quando a lua era cheia ou quando o céu estava tão claro que se podia ficar sob uma cobertura de estrelas.

Nessas ocasiões, se por acaso também houvesse um pouco de vento, podia-se ouvir o farfalhar dos pinheiros e sentir o profundo e impenetrável mistério que está na raiz de toda a vida. Para mim, o sussurro era uma espécie de música celestial. Poetas de todo o mundo cantaram suas canções sobre o mistério da meditação que pemieia os bosques e florestas, e eu era atraído pela solidão fascinante de que são símbolos. Talvez meu amor pela natureza fosse intensificado pelo fato de eu ser filho único e criança frágil, mas seria exagero de minha parte considerar-me um "solitário". Apesar disso, depois de uma prática intensa de karatê, não tinha coisa melhor do que sair e perambular sozinho. Então, quando estava na faixa dos meus vinte anos e trabalhava como professor em Naha, seguidamente me deslocava a uma ilha comprida e estreita na baía, que ostentava um parque natural esplêndido chamado Okunoyama, com pinheiros soberbos e um lago enorme de lótus. A única construção na ilha era um templo zen. Aqui também eu costumava vir com freqüência para caminhar sozinho entre as árvores. Por aquela época eu já praticava karatê há alguns anos, e a medida que aprofundava meu conhecimento da arte tornava-me mais consciente de sua natureza espiritual.

Usufruir minha solidão enquanto ouvia o vento assobiando por entre os pinheiros era, me parecia, um modo excelente de alcançar a serenidade da mente que o karatê exige. E como isto havia sido parte do meu modo de vida desde a mais tenrra idade decidi que não havia nome mais apropriado do que Shoto para assinar os poemas que escrevia. Com o passar dos anos, este nome se tomou, penso eu, mais conhecido do que aquele que meus pais me deram no nascimento, e muitas vezes achei que se não escrevesse Shoto juntamente com Funakoshi as pessoas podiam não saber quem eu era. "
Gichin Funakoshi

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